Depois do almoço, assoberbada de pensamentos, mais uma vez deixei que o instinto me guiasse. E este, automaticamente fora diretamente ao encontro dele. Como se eu não previsse que seria isto que minha mente faria. De telefone em punho, pensei durante minutos enquanto olhava à janela o sol morno do lindo dia a fora.
Decidi então ligar com o único intuito de saber como estava. Mas não me atendera.
Pus a primeira roupa que encontrara pois não gostaria de me atrasar para o trabalho. Desci esbaforida a rua ainda envolta em pensamentos de prós e contras.
De certo ainda nada concluíra, e de que valia então assoberbar-me em pensamentos? Enquanto tentava friamente analisar a situação que me encontrava, volta e meia minha mente ia de encontro à ele. Pensava em prós e me vinha seu sorriso. Franco e bobo, por vezes o sorriso de menino levado, que quebrara um vaso com um chute mal calculado e em vão escondera tudo tentando evitar o castigo. E ria sozinha, lembrando de seu sorrir. Pensava em contras e me vinha a mente seus gestos estabanados que por vezes me machucavam mais o coração do que o corpo. E pensava em seu corpo, sua pele tão branca, porém leitosa, que não deixava transparecer veias. O branco opaco de sua pele era facilmente marcado por pequenas mordidas ou até mesmo apertos um pouco mais fortes.
Pusera The Killers para ser trilha sonora do caminho ao trabalho. Ouvia uma música, que dizia "don't you wanna come with me? don't you wanna feel my bones on your bones? It's only natural"¹.
Caminhava ao sol da tarde, apressadamente em passos que ritimava conforme a música. O ritmo era perfeito para a pressa do meu caminhar, cantarolava um tom acima do que julgava normal, o que fazia os transeuntes me olharem com um misto de curiosidade e espanto. E não me importava.
Segui até a parada do ônibus e esperei. Queria ainda ter tempo de poder ligar para ele antes de chegar ao trabalho. Em minha mente ainda ressoava o refrão "it's only natural". Me fazia lembrar dele, que havia escrito certa vez que "no jeito mais natural, dois carinhos se procuram", citando um dos meus poetas favoritos. E lembrava de sua bobice ao trocar a palavra
carinho por
caminho, e mudara com sua estabanadice o sentido de toda a frase. Ria-me sozinha e percebia que a minha vontade dele aumentava vertiginosamente. Precisava lhe falar, já não podia dar mais um passo sequer sem ter certeza de que não cultivava a raiva. Precisava lhe falar, não podia deixar que a raiva se instalasse, pois se caso isso acontecesse, não haveria mais motivo para pensar sobre nada. E se minha enorme vontade dele não fosse decisivo, o que mais haveria de ser?!
Liguei e me surpreendi quando atendeu, o acreditei que não faria caso estivesse chateado. Porém, sua voz transparecia, propositalmente, o que gostaria que eu soubesse. Não, não estava tudo bem. Perguntei-lhe só para confirmar o fato ou dar-lhe a oportunidade caso quisesse falar sobre algo que não lhe fora ainda aceito pelo sub-consciente após nossa triste conversa no dia anterior. Mas ele dispensou tal oportunidade, talvez por não ter nada que realmente quisesse comentar. Tudo lhe havia sido deglutido e encontrava-se agora com dor de estômago, devido a lenta digestão do que tínhamos dito um ao outro ontem. Mas por que então atendera?! Por que queria que eu soubesse da sua tristeza, ou da discordância de tudo que eu lhe havia exposto?!
Percebi exigir-lhe demais querendo que me tranquilizasse e quis então por um fim à conversa. De certa forma sua raiva me tranquilizava. Ela era uma reação natural, e incontestável prova de que compreendera o que havia lhe dito na noite anterior. Pensava comigo mesma, "O quer também?! Não se pode ter tudo!" Ao dispensar seu amor, certamente algum sentimento tomaria o seu lugar, e este era claramente o desgosto.
Entrei em sala e como quem veste uma máscara, me ocultei atrás de uma feição tranquila que mantive até o fim da aula. Nunca demorara tanto e por diversas vezes passei o olho pelo relógio como se quisesse apressa-lo. Finalmente eram quatro e meia. Como tardara a chegar!
Sai porta à fora, com o típico sorriso de sexta-feira. E, antes mesmo de acender um cigarro, já estava com o telefone em punho. Precisava da certeza de que ele ainda estava em casa, pois depois dos vinte anos, só se deve fazer loucuras, ao menos, um pouco planejadas.
E mais uma vez atendera ao telefone como quem ansiava e repugnava meu telefonema e o soar de minha voz. Tinha visita, o que pouco me importava, ou melhor, até me dava mais estímulo, pois sabia que não sairia de casa tão cedo, muito embora tivesse que se apresentar naquela mesma noite.
Aflita, fui à parada de ônibus, não queria tardar. Não mais que já tardara nesses meses que se passaram. Não poderia e nem deveria tardar.
Desejei que o ônibus viesse bem rápido. Mas no meu desejo, esqueci de acrescentar que também queria que este viesse vazio, e eis que então viera e estava mais cheio do que de costume numa tarde de sexta-feira. E mais cheio do que de costume era quase que inaceitável. Como precisava sentar e refletir sobre o que estava ao ponto de fazer! Mas mal podia respirar entre tantas pessoas.
Uma senhora se ofereceu para segurar minha bolsa, na sua antipática cordialidade. Aceitei sem pestanejar e ainda antes, lembrei-me do quanto precisava de música e pus o player no bolso detrás da calça. A cada parada que o ônibus fazia, mais pessoas subiam e se aboletavam e me espantava a quantidade que este admitia.
E tantas pessoas entraram, que deu-se início o burburinho. Aumentei o volume o mais que pude, embora não pudesse deixar de ouvir vozes indistintas que repetiam "Meu Deus! Não cabe mais ninguém!" ou ainda "Motorista, não dá mais ninguém!".
Ainda faltavam dois pontos mais antes da minha casa. Era agora o momento único de decidir o que faria. Como queria vê-lo e como queria dizer-lhe que de nada mais importava todas as inseguranças que tinha, já o amava e o que fazer com tamanho amor se não amar?! Mas não queria invadi-lo, não queria morder e assoprar, como ele dizia que eu, volta e meia, costumava fazer.
Sim. Tinha de lhe falar. Mais ainda, tinha de lhe ouvir dizer o que quisera na noite anterior e não pudera. Mesmo que ele não tivesse mais a menor vontade de fazê-lo como eu já constatara ao telefone. Lhe obrigaria, com a minha presença.
Ao descer do ônibus, o frio na barriga foi inevitável. Borboletas no estômago.
Atravessei a estrada, de um lado pro outro, uma dúzia de vezes, pois só havia estado lá uma unica vez e nem bem me recordava. Lembrava me apenas de chorar ao sair, das cores da tarde deste dia e do quanto desejei nunca mais voltar. Mas lembrar disso era inútil agora e de nada me ajudaria a achar a casa. O que não foi difícil.
Na porta, uma cachorrinha me recebia e pela janela do segundo andar podia vê-lo. Sim, eu estava certa. Como ele é bonito assim, ao olhar de quem observa e não sabe que é observado. Espontaneamente lindo.
Assoviei e instantaneamente ele me olhou. Sua feição era um misto de alegria, surpresa e obviedade. Parecia saber que eu iria, mas fingia surpresa.
¹ Você não quer vir comigo? Você não quer sentir meus osso nos seus ossos? É apenas natural.