segunda-feira, 5 de julho de 2010

A fábula do pequeno pássaro presunçoso

A noite já caía, o sol há pouco havia se recolhido e os tons de laranja-purpúreos coloriam as nuvens que rajavam o céu. Este espetáculo de cores tem menor duração no frio inverno que adentrava e em pouco tempo a noite chegaria, escura e envolvente como manto negro.
O final da tarde anunciava o que  todos os pássaros tinham em seus instintos mais primitivos. Que deveriam recolher-se ao ninho ou à árvore a qual estava designada para que dormissem.
Todos cantavam em revoada, e em alvoroço se empoleiravam em goiabeiras, amoreiras, mangueiras e outras diversas árvores mais. Cada um em sua árvore preferida, com seu bando ou família, abrigavam-se e se preparavam para a gélida noite que estava por vir.
Da minha janela, sempre acompanhava o ir e vir dos pássaros e seus repetitivos hábitos. O canto deles me anunciava a chegada da manhã nas noites que passava em claro, por outras vezes me diziam o findar da tarde e o inicio da noite, seus alegres namoricos eram como calendário ao me afirmar o tão esperado início da estação dos amores, a primavera.
A árdua luta travada nos galhos da amoreira era indício claro de quem mandava por ali no nascer de seus primeiros frutos primaveris. Se caso as quisesse, eu teria de lutar pelas amoras que plantei como eles brigavam entre si. E ao contrário do que possa se pensar, não havia vantagem alguma em ser da minha espécie, visto que não sabia voar.
No calmo ritmo peculiar da natureza, viviam suas vidas e atarefavam-se de seus afazeres de pássaro. Como relógio, me ditavam um ritmo porém diferente do habitual. O ritmo da vida e dos pequenos seres era mais sutil e simples.
Mas não o pequeno sabiá. O pequeno e dócil sabiá-laranjeira que vivia em meu quintal. Sua plumagem era vermelho-ferrugem em seu ventre, levemente alaranjado, e o restante de seu corpo de cor parda, com o bico de um amarelo muito escuroEle teria tudo para passar despercebido diante meus olhos curiosos, mas havia algo de diferente nele. Algo surpreendente, algo iluminado que me chamava muita atenção. Talvez fossem seus hábitos nada ordinários, ou o seu cantar que em muito se assemelhava ao cantar de todos os outros sabiás, porém o modo qual ele cantava era único. Cantava mais forte e mais alto do que os de mesma espécie, parecia fazê-lo não só por estar marcado em seu instinto de pássaro, parecia fazê-lo com mais amor, ou pelo menos com mais astúcia.
Na precisa hora da revoada, ele não se recolhia. Zanzava fagueiro por todo o quintal. No primeiro sobrevôo, pousava na goiabeira porém frutos não encontrava. Tornava a voar sobre o jardim e aterrissava à minha amada amoreira, depois ia à marianinha, e à nespereira e em nenhuma delas achava o que buscava. As árvores também tinham o seu ritmo e necessitavam da noite de descanso, tal qual o pequeno sabiá, para que na manhã seguinte provessem novos frutos. Mas ele parecia não entender. Alçava vôo uma vez mais e rondava por todas as árvores frutíferas. Por vezes encontrava uma fruta ou outra, as vezes tinha de procurar as que caíam ao solo. Se alimentava da maneira que podia e toda noite era assim. Eu o acompanhava com os olhos e quando o perdia de vista, ainda podia ao longe ouvir o seu cantar.
Mas hoje seria diferente. Percebi quando ele repentinamente pousou no parapeito da minha janela. Tamanha minha surpresa, dei um pequeno sobressalto. Ficamos nos entre-olhando e não quis arriscar mais nenhum movimento brusco com medo de que se afastasse. Mas muito pelo contrário. Já foi falando sem qualquer medo de me afugentar "Você é triste." -disse o sabiá me encarando os olhos. "Ora, que sabiá assanhado!", pensei comigo mesma. Seguiu-se uma longa pausa, para depois completar -"Vive aí espreitando, querendo viver a vida dos pássaros."
Não tive reação. Talvez o pequenino estivesse certo, talvez eu realmente os observava mais que o normal e invejava suas simples vidas. Queria retrucar, mas não o faria sem antes pensar um pouco. "Sim" -disse eu à ele ainda envolta em meus pensamentos sem qualquer conclusão formada.
Devo a primeira vista parecer triste, porém, acredito que apenas sou só. Apesar da minha solidão, vivo a minha vida, cumpro meus deveres e respeito meus horários. Ser só e quase com ser triste, mas não seria precisamente. É um pouco diferente.
"E ademais, nunca fora à amoreira brigar por seus frutos"-Insisti.
O pássaro sorriu de canto de boca, tomou fôlego e pôs se a cantar. Era como se o canto lhe dava tempo para pensar.
Continuei então a falar, preferindo fingir não ter notado a falta de educação do pássaro ao cantar assim, por cima do que dizia -"portanto não vivo a vida dos pássaros. Por mais que quisesse, tenho mesmo é de seguir os afazeres e as responsabilidades da minha vida humana."
Fazia ares de tudo saber e insistiu em me dizer o que era e o que não era verdade. E dizia com tanta propriedade, que por segundos acreditei que sabia do que falava. Mal sabia ele que tal verdade era a sua, vista através de seus pequeninos olhos negros.
Insisti mais uma vez em meus argumentos e ele ao menos não tornou à cantar. Pelo contrário. Calou-se, me fitou e disse-me conciso que tinha razão no que afirmava. Mesmo se eu quisesse, não poderia viver a vida de pássaro.
Sorri e passei-lhe a mão pelo pequeno dorso. Ele consentiu amistoso, parecia gostar do afago. Sua receptividade me impulsionou à indagá-lo:
- E tu, pequeno sabiá?! Por que queres viver como gente? Não sabes que a beleza do pássaro é ser pássaro. Sabeis voar e ser livre. E encontrará sempre frutos doces se os procurar com seus irmãos. Terá sempre abrigo junto aos teus quando cair a noite e nunca voará só na escuridão como o fazes. E seu canto nunca será como os demais, afinal teu canto é único, e sempre que ouvi-lo, saberei ser o teu.
Tornou a cantar como se pensasse, mas desta vez alçou vôo e rapidamente desapareceu no breu da noite.
                              Turdus-rufiventris ou Pequeno Sabiá Laranjeira

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