terça-feira, 22 de junho de 2010

Ontem - parte III

Sua insurpresa não me intimidava. Nem a sua cara de malvado (até gosto quando ele faz cara de mau.) Quando veio abrir o portão, me perguntou, com toda indelicadeza que pôde juntar, o que eu estava fazendo ali. Tentava disfarçar a alegria de me ver e se concentrava apenas na raiva que sentia. E não me parecia pouca.
Em uma outra janela, sua mãe se debruçava curiosa para ver o que estava acontecendo. Pensava comigo mesma nas dimensões que tudo aquilo alcançara. Pensava no tamanho da minha estupidez, ao ouvir sua mãe dizer meu nome e perguntar o porquê de ainda não termos entrado.
E assim o fizemos. Muito nervosa, eu comentava a aventura passada no ônibus tentando amansar um pouco a situação. Estava com muita sede, pois o nervosismo me fazia suar as mãos e secava-me a boca. Pedi-lhe um copo d'água e então fomos até a cozinha. A má impressão era tanta, que podia jurar que, se houvesse oportunidade, poria veneno na água que me servia.
Do andar inferior, se podia escutar a guitarra da ilustre visita habilidosa tocando no quarto dele, o que nos fez ficar por ali mesmo. Tornou a perguntar o que eu fazia ali, mas o dizia tão alto que me acanhou muito. Lhe pedi para que falasse mais baixo, mas ele prosseguiu no mesmo volume, sem se importar que sua mãe, a avó ou o convidado escutassem. Implorei-lhe então, e ele nos levou ao quarto defronte à cozinha. Fechou a porta e pôs se a falar. Me pedia para que escutasse e não retrucasse como me é de costume.
Brigava comigo e tinha toda razão ao fazê-lo. Me acusava de ter duvidado de sua hombridade e de sua masculinidade. Julgava me boba e louca, e revirava tudo que tinha se passado nos meses anteriores sem medo algum de me magoar, e me dizia saber o que queria, porque queria e como queria.
Por vezes quis tocá-lo, o que ele negou veementemente. Não imaginava como ansiara tocá-lo, não poderia sequer supor o quanto eu precisava de seu afeto e de seu carinho. Continuou então a falar que sabia de meus compromisso e minhas responsabilidades, que sabia de meu filho e minhas obrigações como mãe.
Falou e falou por muito tempo, e quando mais uma vez quis tocá-lo, rapidamente sacou um grampeador que estava à mão e me ameaçou. Não podia crer naquilo. Tinha muito medo que me grampeasse, mas tal situação era propositalmente tão ridícula, que ambos nos pusemos a rir.
E seguia em dizer me o quanto certas atitudes minhas lhe eram como escárnio ou deboche. Ele não conseguia ver minha insegurança como eu via e para ele, era como se eu estivesse brincando com seus sentimentos. Minha não plenitude realmente me fazia tomar atitudes contraditórias. O meu querer e não querer alternavam-se tão instantâneamente que para outro que não eu mesma, de certo soaria como uma brincadeira de muito mal gosto.
Eu via que esta insegurança me fazia tanto quanto ou até mais mal do que à ele. E sei que antes ele sabia distinguir claramente, mas chegáramos ao momento que ele já não podia mais ver com os olhos sãos, olhos de quem assiste à tudo de longe e tem a praticidade do raciocínio lógico. Não mais. Agora ele apenas podia ver pela ótica afetiva e eu entendia que justo daí vinha toda sua raiva e a inevitável desistência.
Continuava a falar e a cada pausa que eu fiz buscando abraçá-lo, ele me ameaçou com diversas "armas" inusitadas, das mais absurdas como uma pistola de cola quente ou um Hard Disc antiquíssimo até as mais convencionais, como um pequeno pedaço pontiagudo de cano de pvc e um alicate de corte. Como era espirituoso!
Eu lhe dizia que era para seu próprio bem e ele, convicto, dizia-me para não pensar com sua cabeça. Afirmava que por várias vezes já tinha pensado em tudo o que eu inutilmente tentara convencê-lo de não lhe ser benigno e que estava certo. Me queria exatamente como eu era.
Ele nunca havia dito nada tão apropriado. Nunca tinha entendido tão bem minhas estúpidas súplicas por socorro como agora. Disse tudo o que eu precisava e ansiava desesperadamente ouvir.
Me disse então, enfático, que deveria decidir se o queria de verdade, o homem que ele era, ou que então parasse de insidiosamente querê-lo e que o fizesse para sempre. Do jeito que estava não haveria condições de continuar. E lhe dava toda e qualquer razão. Para mim também já se tornara pesado demais, certamente mais do que eu podia suportar.
Lágrimas me vieram aos olhos e senti um alívio que não conseguiria nunca descrever com exatidão. Como se um peso terrível me tivesse sido tirado das costas, uma tranquilidade grandiosa, que deu à minha gigantesca insegurança o peso que lhe cabia. E todas os meus sentimentos outra vez tomariam sua medida exata, sua forma original. Senti como se estivera durante muito tempo em uma gravidade diferente e as proporções de tudo que sentia estavam alteradas de maneira tal que já não sabia mais ao certo qual eram.
Senti como se de súbito pudesse sorrir. E sorri.



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